Diálogo, muito diálogo entre todos e regras apertadas, como condicionar o acesso de autocarros turísticos e impedir o estacionamento caótico, para salvar a Ponta da Piedade, em Lagos, que atrai diariamente centenas de visitantes de todo o mundo. E ainda criar uma associação visando defender e valorizar com informação e fiscalização aquela zona emblemática do Algarve, que até imponha o pagamento a turistas.
Estas foram ideias lançadas durante o seminário sobre a Ponta da Piedade a 28/04/2018 no edifício dos Paços do Concelho Século XXI, na cidade de Lagos, organizado pela Assembleia Municipal, com a presença da bióloga Dina Salvador, do arquitecto Hipólito Bettencourt, do arqueólogo José Pedro Bernardes, do arquitecto e vice-presidente da Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional (CCDRA) do Algarve, Nuno Marques, e da presidente da Câmara Municipal, Joaquina Matos, responsável pelas obras de requalificação da primeira fase em curso naquele local. O encontro, moderado pelo médico Paulo Morgado, presidente da Assembleia Municipal de Lagos, encheu o auditório (cerca de uma centena de pessoas), onde se podiam ver, entre os outros, os ex-presidentes da Câmara socialistas, José Alberto Baptista e Júlio Barroso, representantes de partidos políticos e cidadãos do concelho, além de proprietários de terrenos nos quais, afinal, nada se pode construir.
Joaquina Matos reconhece “falta de informação” da Câmara de Lagos
Ao longo da sua intervenção, Joaquina Matos acabou por reconhecer “falta de informação” por parte da autarquia na concretização do projecto de requalificação da primeira fase da Ponta da Piedade, iniciado em 2016, ou seja, mais de um ano antes das eleições autárquicas realizadas em outubro de 2017. “Não foi feita a apresentação pública. Havia urgência na candidatura por causa de fundos comunitários”, para financiar as obras, assumiu a edil socialista lacobrigense. O projecto tem como objectivo “disciplinar a utilização de espaços para a preservação das arribas mais sensíveis entre aquela zona e a Praia do Canavial, num percurso de cerca de dois quilómetros.” Contempla, nomeadamente, a colocação de painés de informação em diferentes caminhos, a criação de áreas de estacionamento e a instalação de sinalética e betão luminoso, num custo total de 170 mil euros+IVA. Numa segunda intervenção, incluída ainda nesta primeira fase e iniciada recentemente, em abril de 2018, o projecto, que implica um investimento de 140 mil euros, engloba passadiços de madeira e duas zonas de retorno, delimitadores do percurso e bancos para preservar o pisoteio e a circulação. A aposta passará, também, por prestar homenagem, perpetuando a sua memória através de uma estátua, à escritora Sophia de Mello Breyner Andreson, mãe do conhecido jornalista Miguel de Sousa Tavares, por se ter inspirado na orla costeira de Lagos e no recorte das suas grutas em muitas das suas obras literárias, já que aqui passou bastante tempo.
Recorde-se que após a renegociação do protocolo em outubro de 2016 com a Agência de Portuguesa do Ambiente (APA), responsável pela jurisdição da zona da Ponta da Piedade, Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Algarve (CCDRA) e entidades detentoras dos terrenos privados, a primeira fase foi cedida por aquele organismo estatal, a APA, à Câmara Municipal de Lagos.
“Numa arriba estarem quatro ou cinco vezes mais visitantes não é bom para ninguém”
Já a conhecida bióloga lacobrigense Dina salvador, que tem pautado nos últimos tempos a sua actuação pública na defesa da Ponta da Piedade, começou por fazer uma apresentação deste espaço emblemático e ‘ex-libris’ turístico, com a projecção de fotos ‘PowerPoint’ em que se podiam ver imensa fauna e abifauna, gralhas, perdizes, pombos e aves marinhas, além de vegetação abundante. Alertou para a importância geológica do local, avisando que para que ali se queira “construir alguma coisa, tem de se ter todo o cuidado”, e chamou a atenção para o risco de a Ponta da Piedade contar com uma enorme afluência de visitantes proveniente do “estacionamento por todo o lado de dezenas de autocarros ao mesmo tempo.” “É preciso definir a capacidade de carga na Ponta da Piedade. Não se pode permitir que seja um espaço para 40 pessoas onde só cabem quatro. Numa arriba estarem quatro ou cinco vezes mais visitantes não é bom para ninguém”, reforçou.
“Pânico” das pessoas em caso de pedras a cair nas praias e nas visitas dos barcos às grutas com toda a gente a fugir ao mesmo tempo
Nos últimos dois anos registaram-se ali várias derrocadas atingindo as praias. “E se ocorrer um sismo mesmo de pequena intensidade sobre as praias do Canavial, Camilo, Barranco e dos Pinheiros o pânico será total com muita gente a tentar fugir desses locais ao mesmo tempo”, advertiu Dina Salvador.
A bióloga referiu que, “em resultado do pisoteio pela multidão, a vegetação tem desaparecido” na Ponta da Piedade, cujas “costas estão muito permeáveis em consequência das chuvas e da própria erosão.” Exibiu, a propósito, uma foto da Praia do Camilo cheia de gente no Verão e direccionou uma vez mais o seu alerta para a insegurança nesta zona. “Em caso de caírem pedras devido à chuva poderá haver um ambiente de pânico entre as pessoas, com os mais idosos e as crianças a tentarem fugir, pois os terrenos estão muito sensíveis. Muitos barcos vão cheios de pessoas nas visitas às grutas, quando no máximo podem transportar apenas quatro ou cinco. Pode não se morrer por causa das pedras, mas pelo pânico que entretanto se gera”, insistiu.
“Estacionamento caótico e cheio de autocarros com turistas no Verão”
Por outro lado, aquela especialista do ambiente, num discurso elucidativo e a cativar o público, lamentou o “estacionamento caótico” na Ponta da Piedade, “cheio de autocarros com turistas no Verão.” “Ninguém respeita nada nem ninguém e o coberto vegetal está a ser destruído pela multidão”, observou Dina Salvador, para quem se impõe de uma vez por todas “estudar a sério esta questão.” “Na zona das falésias, mesmo após a primeira fase da requalificação, andam muitas motos, bicicletas e carrinhas agora. Há campismo selvagem e ainda recentemente podia ver-se lixo por detrás de uma moita. Entre a Praia de Dona Ana e a do Camilo existe um terreno plano, privado e que se encontra vedado, o qual está a ser destruído pelas chuvas, pela erosão normal e pelo lixo”, queixou-se Dina Salvador, acrescentado que é urgente “preservar ao máximo este espaço para futuras gerações”. E exibiu, ainda, uma foto de um caminho betonado recentemente construído que, entretanto, “já começa a rachar”, defendendo por isso a sua urgente manutenção.
“É necessário diálogo com os proprietários dos terrenos e de todas as partes envolvidas” na zona da Ponta da Piedade
“Infelizmente, até agora, nós todos, comunidade, não tivémos a competência suficiente para tratar deste património. Fomos incapazes”, reconheceu. Por isso, Dina Salvador considerou que o futuro passará pela criação de uma “associação de cidadãos da Ponta da Piedade para defesa dos interesses dos donos desses terrenos, da Câmara Municipal de Lagos, dos visitantes, da população local, da Marinha, da Agência Portuguesa do Ambiente e da CCDRA.”
“É necessário diálogo entre os proprietários dos terrenos e de todas as partes envolvidas naquela zona. Os braços de ferro não interessam a ninguém. Há que ter calma, uma nova vontade e juntar todos à mesma mesa. Até agora, os donos dos terrenos recebem pisoteio, lixo, têm de pagar o IMI (Imposto Municipal sobre Imóveis) e nada vêem em troca. Por isso, põem lá ovelhas e burros. Se em vez de dialogarmos para encontrar soluções andarmos a choramingar, daqui a dez anos estaremos neste local a falar sobre as mesmas coisas, os mesmos problemas. Ou, então, vai tudo para tribunal e dentro de 50 anos resolve-se-á”, avisou.
“Não basta ir para as redes sociais”
Sem papas na língua, Dina Salvador lançou ainda como sugestão que o acesso à Ponta da Piedade até seja controlado e “pago” pelos turistas, de forma a gerar receitas próprias para uma futura associação, “não estando assim de mão estendida” para nenhuma entidade e poder contratar pessoal, a fim de fiscalizar a zona e prestar informações aos visitantes. “Não basta ir para o ‘Facebook’ e outras redes sociais, pois com isso não chegamos a lado nenhum nesta matéria. Quando vamos ao estrangeiro, achamos natural ter de pagar para visitar qualquer monumento. Se, por exemplo, na Fortaleza de Sagres os visitantes pagam para entrar, porque não o mesmo se dever passar num espaço aberto como a Ponta da Piedade que urge preservar e valorizar”, notou a bióloga, antes de concluir a sua intervenção, já a pedido do moderador da mesa, Paulo Morgado, por ter excedido o seu tempo.
“Local sagrado desde há séculos ligado aos marítimos”, destacou o arqueólogo João Pedro Bernardes
Por outro lado, o arqueólogo João Pedro Bernardes, docente da Universidade do Algarve, em termos gerais chamou a atenção para a importância cultural e simbólica da Ponta da Piedade. “É um local sagrado desde há séculos ligado aos marítimos. A ermida que ali existiu e onde iam orar remontou ao século XVI e no seu lugar foi construido o Farol”, contou. E aproveitou para realçar que qualquer informação no local terá de ter em conta a “carga cultural e simbólica da Ponta da Piedade.” “É um espaço de dimensão sagrada, que desde sempre foi de grande importância na defesa, vigília e sinalética para os marítimos”, sublinhou o arqueólogo.
Por sua vez, Mário Cachão, geólogo e professor da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, destacou a extrema importância geólogica daquela zona. Para este especialista, qualquer intervenção “tem de encontrar um equilíbrio dinâmico a contendo de todos, que ajude a proteger esta zona tão rica em termos geológicos.”
Autor: Litoralgarve