No princípio eram só pedras. Grandes, imensas, silenciosas no campo alentejano. Mas para Geoffrey William Braybrooke Lowe, não havia pedra que não pudesse falar. Chegou a Évora nos anos 50, vindo de Inglaterra, com um caderno de capa preta e um olhar treinado para medir séculos no alinhamento das lajes. Passava horas a desenhar perfis, a medir distâncias, a fotografar cada ângulo da Anta Grande do Zambujeiro. Aos olhos de quem passava, era apenas mais um estrangeiro excêntrico. Mas não aos olhos do Estado Novo.
O regime de Salazar desconfiava dele. Publicava artigos em revistas estrangeiras sem pedir bênção a Lisboa, trocava cartas com arqueólogos de Paris e Londres, e — pior ainda — tinha liberdade para andar pelo Alentejo como se fosse dono do território. Na época, a arqueologia era mais do que ciência: era um território controlado, onde a História tinha de se alinhar com a narrativa oficial. Lowe não se alinhava.
Tudo começou a mudar quando, numa manhã fria, recebeu um envelope timbrado. As licenças para escavar seriam “temporariamente suspensas”. Depois vieram as restrições de acesso ao sítio. Oficiais apareciam sem aviso, pediam listas de materiais, faziam perguntas que soavam mais a interrogatório do que a curiosidade científica. E, pouco a pouco, Lowe percebeu que estava a ser afastado. Um dia, parte do seu material ficou retida num armazém estatal; outro dia, disseram-lhe que certas fotografias “tinham desaparecido”. A escavação foi interrompida abruptamente. Para um investigador, era como fechar um romance a meio — sabendo que alguém estava a rasgar as últimas páginas.
Décadas mais tarde, quando a poeira política assentou, Mário Varela Gomes entrou em cena. Herdou fragmentos do caso: relatórios dispersos, objetos mal catalogados, datas contraditórias. Trabalhou como um detetive, ligando testemunhos antigos a achados recentes, tentando reconstruir o que Lowe não pôde terminar. Passava horas em arquivos, imaginando o que se teria perdido nos silêncios forçados daquela época.
E então, em 2024, uma nova peça caiu sobre a mesa. A família de Henrique Leonor de Pina, outro arqueólogo que trabalhara nos anos 60, doou à Câmara Municipal de Évora o seu espólio: fotografias nunca vistas, cartas pessoais, notas rabiscadas no calor das escavações. Era como encontrar uma caixa esquecida num sótão, cheia de provas que ninguém pensava ainda existirem. Ali estavam imagens do Zambujeiro como Lowe o teria visto, detalhes de campanhas posteriores, ecos de conversas e decisões que nunca chegaram a relatórios oficiais.
Hoje, quem caminha pela Anta Grande do Zambujeiro vê apenas a grandiosidade das pedras. Mas, para quem conhece a história, o monumento é também um arquivo vivo de um jogo antigo: um homem que sabia demais para o conforto de um regime, outro que lhe seguiu as pistas anos depois, e um terceiro que guardou memórias como quem guarda provas de um caso por resolver. As pedras continuam a não falar, mas talvez, com o tempo, a história de Lowe encontre a última peça que falta.
Paulo Freitas do Amaral
Professor, Historiador e Autor