Também não faltam casos de pessoas, cujas motivações para atear um fogo surgem por “vingança e para chamar a atenção para problemas psicológicos.” No tocante à necessidade de chamar a atenção, em 2022, a Polícia Judiciária identificou 3,2 por cento de casos. Já no que diz respeito a vingança ascenderam a 7,9 por cento, enquanto que o fator raiva atingiu 4,8 por cento. E 82,4 por cento dos indivíduos encontraram nos incêndios uma “forma para resolver problemas do dia-a-dia.”
José Manuel Oliveira
Numa altura em que, em Portugal, se aproxima a fase ‘Charlie’, de 01 de Julho a 30 de Setembro, meses de Verão e com calor mais intenso, obrigando à máxima força por parte de meios de combate de fogos rurais, o consumo de álcool contribuiu, em 2022, para 34,1 por cento dos incendiários detidos pelas forças de segurança, enquanto que 20 por cento apresentavam problemas de saúde mental. Já em relação a 38,8 por cento dos indivíduos que provocaram incêndios não existem indicadores precisos. Pelo meio, surgem 3,6 por cento com consumo de droga e outros tantos devido à ingestão de bebidas alcoólicas e de produtos estupefacientes.
A revelação foi feita por Cristina Soeiro, responsável pelo Gabinete de Psicologia e Seleção da Polícia Judiciária (PJ), durante um ‘workshop’ via ‘online’ sobre «Incêndios Rurais – Como Comunicar?». Tratou-se de uma iniciativa conjunta entre a Agência para a Gestão Integrada de Fogos Florestais (AGIF), Autoridade Nacional de Proteção Civil (ANPC), Guarda Nacional Republicana (GNR), o Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF), o Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA) e a Polícia Judiciária, que contou com a participação de jornalistas de vários órgãos de comunicação social do país, entre os quais o ‘Litoralgarve’. Sara Mieiro dos Santos, especialista em Comunicação e Relações Públicas, foi a moderadora deste encontro.
“O FOGO É UM FASCÍNIO” PARA ALGUNS INDIVÍDUOS, OS QUAIS AO SEREM INTERROGADOS PELAS AUTORIDADES ATÉ REAGEM: “MAS NÃO MATEI NINGUÉM”
“Há crimes mais graves do que outros. Também temos algumas situações que a polícia identifica, depois, com origem intencional que foi feita por um menor. Em Portugal, ao contrário de outros países, não temos a realidade relacionada com o vandalismo” praticado por jovens”, afirmou aquela investigadora da PJ. Há indivíduos para os quais “o fogo é um fascínio” e ao serem interrogados pelas autoridades até reagem: “mas não matei ninguém.”
Existe um grupo de incendiários que já tem “mais de 60 anos, comportamento criminal diferente.” “Em 2022, tivemos uma forte quantidade de pessoas que até trabalham na construção civil. É uma área que integra pessoas com habilitações literárias baixas, 1º. ciclo. E a PJ precisa de saber como lidar”, observou Cristina Soeiro. Nesse sentido, explicou, é necessário “estudar a tipologia do local, a motivação, as relações [do incendiário], sendo que grande parte nada tem com os donos dos terrenos.”

DOS SEIS CASOS ENTRE 2021 E 2022, DE INCENDIÁRIOS, EM MÉDIA DE 30 ANOS, COM MESTRADOS E LICENCIATURAS, ATÉ À EXISTÊNCIA DE “PESSOAS QUE TÊM LIMITAÇÕES AO NÍVEL DAS COMPETÊNCIAS SOCIAIS – DOENÇA DIAGNOSTICADA, DIFICULDADE EM SE ADAPTAR”
“Temos seis casos entre 2021 e 2022, com indivíduos, em média de 30 anos, com mestrados e licenciaturas. São poucos, mas podemos estudar para perceber melhor. Essas pessoas saem completamente fora daquilo que é o padrão normativo, comportamentos mais complexos, em que a polícia também precisa de saber como lidar e como identificar”, referiu a investigadora.
Por outro lado, prosseguiu, “há pessoas que têm limitações ao nível das competências sociais – doença diagnosticada, dificuldade em se adaptar. Temos muitos indivíduos com 40 e 50 anos que não conseguem viver sozinhos, têm de viver com os pais, porque não têm grande capacidade de arranjar trabalho que lhes permita [independência], muitas vezes têm uma vida familiar mais estruturada. São pessoas extremamente suscetíveis ao impacto da maneira como é dada [a notícia]. Por exemplo, iniciou-se a época de incêndios, ou o mapa de Portugal a indicar zonas a arder, não pode ser dito, não pode ser apresentado, porque vai normalizar um comportamento que nós queremos demonstrar que não é aceitável. Isto vai ter um impacto noutras pessoas. Pode não ter um impacto em mim, ou na maioria das pessoas que vive, por exemplo, nos centros urbanos e estão mais distanciadas do problema [dos incêndios florestais]. Mas nestas pessoas em que o espaço rural é algo que faz parte das suas vidas pode ter um impacto que é aquilo que nós não pretendemos. Aqui as palavras fazem toda a diferença e muitas vezes conseguimos ter o mesmo impacto de causar interesse na pessoa, mas para que não se normalize um comportamento, ou algo que não deve ser normalizado. A comunicação social tem um papel formativo e preventivo em muitos grupos sociais.
“TIVEMOS ALGUNS CASOS EM QUE INDIVÍDUOS ESTAVAM DIAGNOSTICADOS COM SITUAÇÕES DE ALCOOLISMO. COMO SE PODE RESOLVER ESTE PROBLEMA? É MUITO DIFÍCIL. TÊM DE SE UTILIZAR OUTRAS FONTES DE INFORMAÇÃO PARA PERCEBER COMO É QUE AQUELA PESSOA FUNCIONA”
Por exemplo, observou Cristina Soeiro, “como é possível estabelecer contactos ou fazer interrogatórios com uma pessoa que tem défices cognitivos? É possível, mas temos fazê-lo com determinado tipo de estratégias.”
“Tivemos alguns casos em que os indivíduos estavam diagnosticados com situações de alcoolismo. Como se pode resolver este problema? É muito difícil. Têm de se utilizar outras fontes de informação para perceber como é que aquela pessoa funciona. Às vezes, utiliza-se a estratégia, inclusive, de ir ao local para a pessoa explicar como fez para ajudar [a ter dados] para a comunicação. Sobretudo a abordagem a essas pessoas é fundamental, com mais eficácia, que ajude o mais possível”, acrescentou a responsável pelo Gabinete de Psicologia e Seleção da PJ.
“ALGUNS INCENDIÁRIOS COM PROBLEMAS PSICOLÓGICOS, NOMEADAMENTE DÉFICES COGNITIVOS, ESTÃO A CUMPRIR PENAS EM PRISÃO NORMAL”
Ao nível da saúde mental, “a instabilidade é uma designação que só o juiz pode aplicar. Mas muitos incendiários não são dados como inimputáveis pelo sistema de justiça. Temos alguns incendiários com problemas psicológicos, nomeadamente défices cognitivos, que estão a cumprir penas em prisão normal. A saúde mental neste tipo de casos para prevenção da reincidência é, de facto, também importante”, sublinhou.
Também não faltam casos de pessoas, cuja motivação para atear um fogo rural surge por “vingança e para chamar a atenção para problemas psicológicos.” No tocante à necessidade de chamar a atenção, em 2022, a PJ identificou 3,2 por cento de casos. Já no que diz respeito a vingança ascenderam a 7,9 por cento, enquanto que o fator raiva atingiu 4,8 por cento. E 82,4 por cento dos indivíduos encontraram essa “forma para resolver problemas do dia-a-dia.”

PRAZER EM OBSERVAR O FOGO, RAIVA, PROBLEMAS PSICOLÓGICOS E ATÉ DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
Raiva, prazer em observar o fogo e problemas de saúde mental fazem parte do perfil de muitos incendiários, com idades entre os 20 e os 40 anos. Em 2022, foram identificadas mulheres com problemas psicológicos na esfera familiar, nomeadamente problemas com os companheiros, violência doméstica.
De acordo com Cristina Soeiro, 65 por cento dos incendiários utilizaram “isqueiro e engenhos artesanais mais elaborados.” Sem antecedentes criminais acabaram por ser registados mais de 78,8 por cento (67 pessoas) e condenações 12,9 por cento. Houve 31 indivíduos, aos quais foram aplicadas a medida de coação mínima, de Termo de Identidade e Residência, enquanto aguardaram julgamento, 41 incendiários ficaram em prisão preventiva e 11 em prisão domiciliária.
A ZONA DE VILA REAL É ONDE FORAM REGISTADAS PESSOAS COM PROBLEMAS DE SAÚDE MENTAL, ENQUANTO QUE NO CENTRO DO PAÍS A PJ TEM IDENTIFICADO INCENDIÁRIOS COM CONSUMOS DE ÁLCOOL
Segundo aquela investigadora da PJ, de 2015 a 2022, a maioria dos incendiários, situação que atingiu 39,6 por cento dos casos, teve a ver com “problemas psicológicos e de saúde mental”. Seguiram-se, com 36,7 por cento, problemas relacionados com o com o consumo de bebidas alcoólicas e idades entre os 41 e os 64 anos, divorciados e a viver sozinhos.
Questionada por jornalistas, Cristina Soeiro apontou “de Lisboa para cima” o perfil de regiões de Portugal, com mais problemas, indicando, nesse sentido, a zona nortenha de “Vila Real, onde foram registados indivíduos com problemas de saúde mental, e o centro do país com mais consumos”, numa alusão a bebidas alcoólicas.
GNR RECONHECE QUE, NO CENTRO E NORTE DO PAÍS, AS ALTERAÇÕES CLIMÁTICAS E OS DIFÍCEIS ACESSOS AOS LOCAIS TAMBÉM CONTRIBUEM PARA MUITOS INCÊNDIOS
Já a Guarda Nacional Republicana apontou a “negligência” como causa de “69 por cento” dos incêndios rurais, em 2022, existindo “dolo em 31 por cento”. “Em 11 por cento [dos casos] são provocados por pessoas femininas e 89 por cento por masculinos”. Nesse sentido, as autoridades têm de efetuar um trabalho ao nível da identificação dos indivíduos de risco, conhecer os seus antecedentes, inserção social e ocupação, bem como identificar os espaços de risco. Para uma “ação dolosa tem de haver prova factual devidamente fundamentada”, pois sem esses aspetos “não conseguimos sustentar a tese criminal”, disse um responsável da GNR. No ano passado, foram detidos 79 indivíduos e 1.103 identificados.
No centro e no norte do país, as alterações climáticas e os difíceis acessos aos locais também contribuem para muitos incêndios rurais. Sensivelmente até Maio deste ano, a GNR registou 54 falsos alarmes para incêndios rurais, na sequência de um primeiro alerta.
EM EVACUAÇÕES DE ALDEIAS, A PRIORIDADE É COLOCAR IDOSOS EM SEGURANÇA, QUE VIVEM SOZINHOS, E PESSOAS COM NECESSIDADES ESPECIAIS
Quando se torna necessário evacuar aldeias, há determinados fatores que se levantam no âmbito desta operação, sobretudo colocar “idosos em segurança, que vivem sozinhos, e pessoas com necessidades especiais”, especificou o major da GNR Cláudio Gonçalves Saraiva, apontando, nesse sentido, para a colaboração desta força de segurança. Muitas dessas pessoas são levadas, na altura, para lares, centros de dia, casas de familiares ou outras estruturas de apoio, enquanto os bombeiros combatem os incêndios, sendo retirado tudo o que é possível com os meios de socorro.
“Há incêndios florestais muito complexos e de difícil previsão”, disse, por sua vez, o comandante Mário Silvestre, considerando que “muitas vezes o que parece seguro num incêndio florestal, não é.”
ALERTAS DE RESPONSÁVEIS DO INSTITUTO DA CONSERVAÇÃO DA NATUREZA E DAS FLORESTAS
Por seu turno, Ana Rita, do Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas, após a exibição de um vídeo durante cinco minutos, destacando que “proteger o país dos incêndios” é o objetivo deste organismo, lembrou que “quem vai autorizar [queimas e queimadas de amontoados resíduos em cada concelho] é a Câmara Municipal”. E apontou para a “responsabilidade” das pessoas, ou seja, dos proprietários dos terrenos “pelo que estão a fazer”.
Já António Salgueiro, do mesmo organismo, referiu ocorrerem queimadas de “forma ilegal”, pois é necessária a presença, no local, de “equipas de bombeiros ou sapadores florestais (…) e em dia que existem condições para o uso do fogo de forma controlada e com técnicos credenciados.” “A maioria das situações é lenha, plásticos e madeira. É preciso consciencializar as pessoas” para os perigos, observou, alertando para a existência de “muitas habitações dispersas, minifúndios.”
“EUCALIPTAIS ABANDONADOS HÁ 40 / 50 ANOS CONTRIBUEM PARA UM EXTREMO ELEVADO DE PERIGO DE INCÊNDIO”
Sobre os materiais combustíveis, frisou que “eucaliptais abandonados são das piores situações para combate a incêndios florestais.” “Os comportamentos das alterações do fogo levam a que, por vezes, os meios aéreos não consigam intervir em determinados sítios”. “A prioridade é combater incêndios rurais. A noite permite a gestão do próprio fogo para acabar com o incêndio. O objetivo e proteger as pessoas”, sublinhou.
A certa altura, um dos intervenientes neste ‘workshop’ perguntou a António Salgueiro se o eucalipto arde mais do que outras espécies. A resposta foi “não.” De qualquer modo, acabou por reforçar a ideia de que “eucaliptais abandonados há 40/50 anos contribuem para um extremo elevado de perigo de incêndio.”

“O SISTEMA TEM DE ESTAR PREPARADO PARA CONTROLAR NOVENTA POR CENTO DOS INCÊNDIOS RURAIS ATÉ NOVENTA MINUTOS”. COOPERAÇÃO INTERNACIONAL EM SITUAÇÕES MAIS COMPLEXAS INCLUI MEIOS TERRESTRES E AÉREOS
Já o comandante Mário Silvestre, representante da Autoridade Nacional de Emergência e Proteção Civil, insistiu no objetivo de “prevenir comportamentos de risco”, bem como “vigiar, detetar [situações] e avisar”, de forma a “combater com rapidez e segurança, numa intervenção musculada e reforçada.”
A partir de 01 de Julho de 2023, estão previstas mais de três mil equipas de operacionais disponíveis para atuar no terreno, além de helicópteros, meios aéreos médios e pesados. “A partir da sala de operações, tem de haver uma atuação musculada no local onde deflagrou um fogo para o mesmo ser combatido com eficácia (…). Se não foi possível, o comando tem de justificar”, o sucedido, notou. “O sistema tem de estar preparado para controlar noventa por cento incêndios rurais até noventa minutos”, vincou Mário Silvestre.
Ao nível da Proteção Civil, a cooperação internacional com meios aéreos abrange Espanha, França, Marrocos e Cabo Verde. Com Espanha, o acordo inclui, perante situações mais complexas, o apoio até 25 quilómetros da fronteira, numa ação que contempla bombeiros e viaturas, além de outros operacionais, como sucedeu recentemente com a deslocação de cem elementos de Portugal para o país vizinho, a pedido da Proteção Civil espanhola.
CRÍTICAS À PROTEÇÃO CIVIL E GNR POR PARTE DE JORNALISTAS NAS REPORTAGENS SOBRE INCÊNDIOS RURAIS E A NECESSIDADE DE UMA PESSOA PARA RELAÇÕES PÚBLICAS
Como noutros anos, os jornalistas lamentaram, neste ‘workshop’, problemas ao nível da informação para as suas reportagens sobre os incêndios rurais, nomeadamente devido ao corte de estradas e complicações com a GNR no terreno.“No ‘site’ [da Proteção Civil] só temos números. A nossa dificuldade é chegar ao terreno, saber se há casas em risco e outras informações complementares. Falta falar com alguém que nos dê essa noção. Falta um relações públicas”, alertou uma jornalista. “Necessitamos de imagens. Tentamos chegar perto dos sítios, pois sem imagens não conseguimos contar a história”, acrescentou outro profissional da comunicação social, queixando-se, como geralmente acontece de norte a sul do país, com o facto de os jornalistas serem “bloqueados pela GNR”, o que obriga a percorrer caminhos secundários.
Também foi defendida a marcação de ‘breefings’ com horários para facilitar a comunicação entre os representantes os órgãos de informação e os comandos e forças de segurança. Esta é, de resto, note-se, uma prática, há anos, existente no Algarve, quando ocorrem incêndios rurais que se prolongam por vários dias, sendo marcados, nessas alturas, vários encontros com os jornalistas nos concelhos atingidos pelas chamas.
Imagens: Arquivo