Lagos presta homenagem com um busto ao médico de clínica geral e cirurgião António Guerreiro Tello 38 anos após o seu falecimento

Com a presença de mais de meia centena de pessoas e quase uma hora e meia de atraso, foi inaugurado, em Lagos, na manhã do dia 31 de maio de 2018, feriado de Corpo de Deus, o busto de António Guerreiro Tello, médico cirurgião lacobrigense (14/11/1895 – 09/09/1980), no espaço ajardinado criado para o efeito entre a rua com o seu nome e a das Juntas de Freguesia. A iniciativa pertenceu à Câmara Municipal de Lagos e Junta de Freguesia de São Gonçalo, correspondendo a um apelo há anos da população.

O projecto foi da autoria da arquitecta paisagista da Câmara, Cristina Pereira, e a execução do busto esteve a cargo do artista lacobrigense Tolentino Abegoaria. Sem custos. Já o material e outros aspectos envolventes “não atingiram” sequer os cinco mil euros, garantiu ao «Litoralgarve» o presidente da Junta de Freguesia de São Gonçalo de Lagos, Carlos Saúde, sem entrar em detalhes nos encargos da obra suportado pelas duas autarquias. “Não vou indicar um valor, mas não foi significativo. O busto está no local certo e homenageámos um grande homem”, acrescentou o autarca que não chegou a conhecer o médico António Guerreiro Tello.

ATRASO DE  ANOS POR “DIVERSOS FACTORES” E  “ÀS VEZES TAMBÉM NÃO ERA UMA PRIORIDADE”, RECONHECE CARLOS SAÚDE, PRESIDENTE DA JUNTA DE FREGUESIA DE SÃO GONÇALO DE LAGOS

Questionado por «Litoralgarve» sobre o motivo do atraso de vários anos desta obra, atribuiu tal situação a “diversos factores.” “Às vezes também não era uma prioridade, não há um factor só”, reconheceu Carlos Saúde. “Concretizou-se. Foi sempre vontade tanto do anterior executivo como deste”, observou. E qual o próximo lacobrigense a ser homenageado com um busto? “Há muita gente. Não vou referir nomes. Alguns já ‘partiram’ e dos quais temos de nos lembrar. Os vivos ainda estão a fazer trabalho”, disse, admitindo nesse sentido o caso do antigo atleta Carlos Cabral, que já tem o seu nome numa pista de atletismo no estádio em Lagos.

TRABALHO DEMOROU CERCA DE UM MÊS APESAR DA DIFICULDADE FOTOGRÁFICA

O busto do médico cirurgião António Guerreiro Tello tem 50x40x40cm de dimensão em cima do pedestal com a altura de cerca de um metro e meio. Foi executado no Centro Cultural de Lagos, numa primeira fase, e, posteriormente, na fábrica da fibra de vidro situada na zona da Falfeira, nesta cidade. O trabalho demorou cerca de um mês. Tratou-se de “um processo normal de moldagem, que passou a moldes negativos, após o que foi injectada lá dentro uma substância denominada pedra acrílica, depois de desmoldado. Foi a D. Maria da Saudade (antiga colabora do doutor António Guerreiro Tello) que me cedeu fotos. Para estes efeitos, são fotos muito más por serem muito pobres em informação. E depois são imagens em que a figura do doutor Tello está metida com outras personagens e sofre sombras, alterações, o que para o efeito não dá, não chega. Mas a D. Saudade esteve sempre lá ao lado a dizer ‘mais para aqui, mais para ali, mais assim’. E pronto, o resultado é este. Finalmente, foi alcançado o objectivo de homenagear este lacobrigense”, explicou, ainda antes do descerramento do busto, ao «Litoralgarve», o conhecido artista lacobrigense Tolentino Abegoaria.

“Disponibilizei-me para fazer este trabalho, que está englobado dentro uma aspiração muito antiga de todos os anos se homenagear um lacobrigense”, sublinhou, lembrando que “infelizmente não conheci o doutor Tello.”

CHEFE DA PSP SÉRGIO MARTINS E O NAVEGADOR SOEIRO DA COSTA

E qual a próxima figura a ser contemplada com um busto? Tolentino Abegoria lançou, para já, ao «Litoralgarve», duas sugestões: “Temos muitas, como o Chefe Sérgio Martins, da Polícia de Segurança de Lagos, que, apesar de não ser natural desta cidade (nasceu nas Caldas da Rainha) deu a vida numa operação onde trabalhava; e figurões da nossa História, um deles por quem tenho muita admiração quanto mais leio e me apercebo a importância gigantesca do indivíduo para além fronteiras, que foi o navegador Soeiro da Costa. Trata-se até de um dos grandes responsáveis pelo começo da nova civilização, um grande estratega. Locais para instalar os bustos não faltam, mas têm de ser situações sempre apreciadas em conjunto com outros responsáveis.”

A “PERSISTÊNCIA” DE MARIA DA SAUDADE, ANTIGA COLABORADORA

Antes da inauguração do busto de António Guerreiro Tello, decorreu na Junta de Freguesia de São Gonçalo de Lagos um encontro com a presença, nomeadamente da bisneta do médico cirurgião, Raquel D´Orey, acompanhada pelo marido e dois filhos, amigos do homenageado, pessoas que trabalharam com ele e autarcas, entre outros convidados. Na ocasião, o presidente Carlos Saúde destacou Maria da Saudade, antiga colaboradora do clínico lacobrigense, “pela sua persistência junto das entidades autárquicas locais para que se concretizasse esta justa homenagem.”

O PAPEL DO FAMOSO MÉDICO NO COMBATE À EPIDEMIA DA GRIPE A

Já o médico Paulo Morgado, presidente da Assembleia Municipal de Lagos e da Administração Regional de Saúde do Algarve, recordou a faceta de António Guerreiro Tello, contextualizando-a no período histórico do nosso país “assolado por uma epidemia – a Pneumónica – que matou 40 milhões de pessoas no mundo (mais do que as vítimas da 1ª. Guerra Mundial) e que ficou conhecida em Portugal como a ‘Gripe Espanhola’, pelo facto de as primeiras notícias sobre a sua existência terem chegado de Espanha, uma vez que em Portugal vigorava a censura. Lagos não escapou aos efeitos desta pandemia – que hoje se sabe ter sido uma Gripe A e no combate destacou-se o doutor Tello, profissional muito reconhecido pelos seus pares, muito hábil na auscultação (forma de diagnóstico muito importante numa época em que poucos recursos existiam), com uma grande vontade de aprender e de passar a outros o seu conhecimento.”

A concluir a sua intervenção, Paulo Morgado considerou tratar-se de “uma homenagem mais do que justa, uma vez que a essência e virtude da medicina é ajudar os outros, em especial aqueles que estão mais frágeis, missão a que o doutor Tello dedicou à sua existência.”

“UM HERÓI LOCAL QUE AINDA CONTINUA VIVO NA MEMÓRIA DE TANTOS LACOBRIGENSES” DESTACA A AUTARCA JOAQUINA MATOS

Por seu turno, a presidente da Câmara Municipal de Lagos, Joaquina Matos, citou o poeta Luís Vaz de Camões – ‘que por obra valerosas se vai da lei da Morte libertando’ – para apontar António Guerreiro Tello como “um herói local” e agradeceu “a grande dedicação de Maria da Saudade”, colaboradora do reputado médico, que tinha consultório na Rua Cândido Reis, tendo em vista esta homenagem, o que prova que “38 anos após o seu falecimento ainda continua vivo na memória de tantos lacobrigenses.” E dirigindo-se aos familiares, salientou o exemplo que o seu antepassado significa para as gerações seguintes, tendo a bisneta agradecido de forma emocionada.

60 CONSULTAS CONSECUTIVAS POR DIA POR NÃO CONSEGUIR RECUSAR ATENDER QUEM QUER QUE FOSSE

Maria da Saudade, Maria Celeste e Irene, que com António Guerreiro Tello conviveram, recordaram histórias e episódios de alguém “sempre disponível para ver os seus pacientes, fosse quem fosse e a que horas fosse” ou “o número diário de consultas que dava, chegando com frequência às 60 consultas consecutivas por não conseguir recusar atender a quem a ele se dirigia e fazendo questão de acompanhar a evolução dos seus doentes, visitando os mesmos nos seus domicílios, muitas vezes de forma inesperada.”

Órfão de pai aos 12 anos, foi médico de clínica geral e cirurgião no Hospital de Lagos e conquistou fama no diagnóstico à tuberculose e terapia desta doença

‘Gente de outros tempos’, 2014, da autoria de Francisco Castelo, e ‘Vultos na Tiponímia, 2002’, de Silvestre Marchão Ferro, antigo presidente da Junta de Freguesia de São Sebastião (hoje Junta de Freguesia de São Gonçalo de Lagos), edições da Câmara Municipal de Lagos, descrevem a figura de António Guerreiro Tello, nascido na freguesia de São Sebastião, no concelho de Lagos, a 14 de novembro de 1895, e que faleceu em Lisboa, no Hospital da CUF, freguesia de São Domingos de Benfica, no dia 09 de setembro de 1980. Era filho de João Pedro Correia Tello, proprietário, também natural de freguesia de São Sebastião, e de Maria José Guerreiro Tello, natural da então vila de Lagoa (hoje cidade), moradores na então Rua de São Sebastão (hoje Rua Conselheiro Joaquim Machado).

Órfão de pai aos 12 anos, concluiu os estudos primários em Lagos, após o que seguiu para Lisboa, onde terminou o curso liceal no Liceu Passos Manuel e depois na Faculdade de Medicina, “revelando-se um brilhante aluno.” “Enquanto o concluía do curso deflagrou a epidemia pneumónica que assolou o país, especialmente no Algarve, para onde correu em auxílio dos seus conterrâneos, trabalhando com o Dr. José Ribeiro Faria e Silva.” Em 1919, terminou a licenciatura em medicina e exerceu a sua actividade clínica no início em Tavira, depois na Vidigueira (no Alentejo) e finalmente em Lagos, cidade onde se manteve, como era seu desejo, até ao final da sua vida. No dia 25 de março de 1920 contraiu matrimónio, na Igreja de São Sebastião, com Margarida Pimenta Formosinho Tello, passando a habitar na ‘Casa da Horta’, onde residiram quatro gerações desta família.

“Aquilo que o Tello ouviu vale mais do que uma radiografia”

“Foi médico de clínica geral e cirurgião no Hospital de Lagos, com imensa dedicação aos seus doentes, independentemente da sua situação social e financeira. Granjeou fama no diagnóstico da tuberculose e na terapia desta doença. O professor Pulido Valente dizia, em relação ao excepcional ouvido clínico do colega algarvio: «Aquillo que o Tello ouviu vale mais do que uma radiografia.» Deslocava-se com frequência à Suíça, onde se actualizava com os novos processos de tratamento desta enfermidade, tendo o seu consultório em Lagos equipado com um aparelho de radioscopia, o único nesse tempo existente nesta cidade”, refere as publicações.

Assistência gratuita a idosos acamados

Nos anos de 1938 a 1940, foi Provedor da Santa Casa da Misericórdia de Lagos, tendo dedicado grande parte da sua vida ao hospital desta instituição. Em instalações anexas a esta unidade de saúde funcionava um albergue com pessoas idosas em estado de invalidez e acamadas, às quais prestava assistência assistência de forma gratuita.

Nas décadas de 40 e 50, conjuntamente com os médicos Henrique Balté e Rodrigues Clarinha, António Guerreiro Tello formou uma equipa de cirurgia, o que permitiu ao Hospital de Lagos ficar equipado com a respectiva sala de operações, ao ponto de ser uma das mais credenciadas a sul de Portugal, garantindo a cobertura de uma vasta área do Algarve e do Alentejo.

Como médico de clínica geral, exerceu vários cargos, desde Subdelegado e Delegado de Saúde, a Director e Provedor do Hospital da Misericórdia de Lagos, passando por médico do Montepio, do Pessoal do Farol do Cabo de São Vicente, em Sagres, onde se deslocava ao domingo. Foi também médico dos Caminhos de Ferro com serviço até à Mexilhoeira Grande, onde chegou a ir puxado por grua, quando era chamado de emergência fora do horário dos comboios.

Até dava dinheiro a pessoas carenciadas para comprar medicamentos

Considerado muito fluente na palavra, as suas intervenções públicas eram escutadas com bastante interesse, independentemente do assunto tratado, sendo igualmente seguida a sua colaboração escrita na imprensa local. “O seu falecimento foi muito sentido pela gente pobre da terra, que dele recebeu grandes favores, e por toda a restante população, não havendo memória de um funeral, na sua terra, tão concorrido. A profunda dedicação e o altruísmo que sempre manifestou ficaram gravados na memória das gentes de Lagos e dos concelhos vizinhos”, sublinham habitantes. Um deles lembrou ao «Litoralgarve» que o famoso clínico “além de prescindir muitas vezes do pagamento de consultas a pessoas carenciadas, ainda lhes dava dinheiro para comprar medicamentos.”

Em reunião realizada no dia 12 de maio de 1970, a Câmara Municipal de Lagos deliberou atribuir o nome do médico Dr. António Guerreiro Tello ao arruamento até então conhecido por Estrada de Santo Amaro. Este facto destaca-se pelo motivo de não se conhecer, até àquela data, outra personalidade que ainda em vida tenha tido o seu nome numa rua da cidade. Tal situação só viria a repetir-se, passadas algumas décadas, com outra figura lacobrigense – Dr. José Reis Júnior – também médico de profissão.