Entrevista a Margarida Mestre: “A arte pode criar lugares de liberdade”

Margarida Mestre, nascida em Lisboa em 1970, é uma artista multifacetada cujo percurso cruza educação, dança, música, poesia e performance. Com formação em várias áreas e um mestrado em Artes Performativas, tem desenvolvido projetos que exploram a relação entre corpo, voz e comunidade. Ao longo da sua carreira, trabalhou com públicos diversos — da infância à idade sénior — e em contextos que vão do palco à intervenção social. Atualmente, é artista residente do Plano Nacional das Artes em Tavira e dirige *Contos e Cantos – Património dos lugares*, um projeto que transforma as memórias dos habitantes de Quarteira e Loulé em espetáculo vivo.

Da performance à educação artística, da poesia sonora aos coros comunitários, Margarida Mestre construiu uma obra que valoriza a criação partilhada e o encontro entre pessoas, territórios e linguagens. O seu trabalho mostra como a arte pode ser, ao mesmo tempo, memória, afeto e transformação social. Em cada projeto, procura fazer da criatividade um espaço de pertença — um lugar onde as vozes individuais se tornam parte de um coletivo maior.

Litoralgarve: A sua formação passa pela educação, dança, música e performance. Como é que estas áreas dialogam no seu trabalho?

Margarida Mestre: Elas dialogam absolutamente. Todas as áreas e experiências que fui tendo ao longo dos anos, tanto de formação como de prática, cruzam-se. Trabalho com plurilinguagens artísticas. Embora tenha formação forte em dança e voz, recorro a ferramentas de outros domínios, como fotografia, artes visuais ou dramaturgia. O meu tema central é a gestualidade, a corporeidade, o movimento e a voz, mas dentro de um projeto posso assumir vários papéis criativos.

Litoralgarve: Viveu dois anos em Nova Iorque com a Bolsa de Jovens Criadores. O que trouxe dessa experiência para a sua carreira em Portugal?

Margarida Mestre:  Fui para NY fazer o “LOOP”, um laboratório de voz orientado por Lynn Book., que culminou num espetáculo coletivo. Regressei a Portugal com confiança e uma prática consolidada no cruzamento do corpo e da voz. Isso deu início ao meu percurso de criação autoral, onde passei a desenvolver peças interdisciplinares e a afirmar a minha própria linguagem.

Litoralgarve: O seu percurso tem-se focado muito na infância e juventude. O que a atrai neste público?

Margarida Mestre: A infância foi sempre um lugar natural para mim, talvez por ser educadora de infância de formação. Tenho uma empatia genuína com as crianças e os jovens, e sinto que o trabalho com eles flui. Cada projeto é desafiante, mas gratificante. Com o nascimento do meu filho, voltei também a criar para a infância e fui acompanhando as etapas da sua própria descoberta.

Litoralgarve: É exigente consigo própria como artista?

Margarida Mestre:  Muito. Cada projeto apresenta novos desafios e muitas vezes sinto a angústia de não saber como vai resultar. Trabalho de forma autónoma, mas também colaborativa, e isso implica enfrentar o desconhecido. Tomo os riscos como parte da prática artística: lidar com o vazio e criar algo onde antes não existia nada.

Litoralgarve: Trabalha em projetos que cruzam arte e intervenção social. Que impacto sente que a arte pode ter nas comunidades?

Margarida Mestre:  A arte pode abrir espaços de liberdade. Nos projetos com comunidades ciganas, reclusos ou pessoas com necessidades especiais, procuro criar lugares de confiança e aceitação plena, onde tudo o que cada pessoa traz é valorizado. A arte é também uma ponte: ajuda a mediar entre linguagens marginalizadas e a sociedade formal, oferecendo experimentação sem julgamento.

Litoralgarve: É maestrina de vários coros comunitários. O que significa dirigir vozes tão diversas num coletivo?

Margarida Mestre:  É desafiante porque encontramos pessoas com muita ou nenhuma experiência vocal. O meu papel é proporcionar ferramentas para a consciência e autonomia da voz, mas também integrar o corpo e a fisicalidade na prática coral. Assim, mesmo quem não tem grande experiência vocal encontra lugar no coletivo. O resultado é sonoro e também visual, pela presença física e expressividade dos participantes.

Litoralgarve: No projeto *Experimentum Naturalis* cruza Arte, Educação e Natureza. O que a inspira neste encontro?

Margarida Mestre: A inspiração vem da paixão pelos espaços naturais e pelas matérias que sustentam a vida. Gosto de trabalhar práticas sensoriais e de questionar o que entendemos por “natureza”. Com adultos, desenvolvo palestras-performances com momentos práticos; com crianças e jovens, exploramos fisicamente os espaços naturais e refletimos sobre a nossa pertença à natureza.

Litoralgarve: Em *Contos e Cantos – Património dos lugares* trabalha com seniores de Quarteira e Loulé. Como nasceu esta ideia?

Margarida Mestre: O projeto surgiu de um convite inicial em Vila do Torrão, ligado ao turismo cultural. Mais tarde, foi adaptado em parceria com o Cine-Teatro Louletano e a Academia do Saber, envolvendo seniores locais. O objetivo é transformar memórias pessoais em narrativas coletivas.

Litoralgarve: Que importância tem transformar memórias e histórias locais em espetáculo artístico?

Margarida Mestre: Cada pessoa tem uma história valiosa. Quando as partilhamos, ganham visibilidade e tornam-se património comum. As memórias individuais revelam também uma história coletiva, que dá identidade ao lugar. O espetáculo é como se cada participante tivesse escrito um livro aberto a todos.

Litoralgarve: Sendo o Algarve tão rico cultural e linguisticamente, o que acredita que a arte pode trazer a quem cá vive e a quem visita?

Margarida Mestre: Pode valorizar e exaltar as experiências humanas, transformando-as em objeto artístico. Isso dá dignidade às histórias pessoais, desperta memórias partilhadas e reforça laços de pertença tanto para residentes como para visitantes.

Litoralgarve: Como artista residente do Plano Nacional das Artes em Tavira, que desafios encontra?

Margarida Mestre: Trabalhei com todas as turmas da escola, bem como com professores. Um desafio é adaptar as minhas ferramentas às diferentes idades e contextos, conciliando o que sei com as necessidades da escola e do plano cultural já existente. Exige flexibilidade, mas também é uma oportunidade para potenciar o que já está no terreno e acrescentar novas perspectivas.

Litoralgarve: Se tivesse de escolher uma palavra para resumir o que move a sua criação, qual seria?

Margarida Mestre:  Vontade.

A apresentação será nos seguintes dias:

  • 18 de setembro | 21h00 – Cerca do Convento do Espírito Santo, Loulé
  • 24 de setembro | 19h00 – Junto ao Centro Autárquico de Quarteira

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